A velha batalha da alta literatura

Roberto Fideli
7 min readApr 17, 2018

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Algum tempo atrás, estava lendo um livro-ensaio do recém-falecido autor búlgaro Tzvetan Todorov chamado A Literatura em Perigo. Meu primeiro contato com Todorov, que foi um filósofo, crítico literário e estruturalista, havia sido em 2013, durante a produção do meu TCC. Nunca achei o trabalho dele particularmente acessível, mas, nesse livro em questão (que, além de ensaio, também funciona como uma autobiografia), ele traz discussões interessantes que começam com uma pergunta difícil: “por que consumimos literatura?”

Bom, quando se estuda mitologia (e acho bom deixar claro que minha área é comunicação e não literatura comparada), discute-se muito que o desejo de contar histórias é algo universal e que permeia toda a história da vida humana. O que implica dizer que não existe povo, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época, que não conte histórias. Os antigos povos das cavernas, que precederam e muito as primeiras civilizações, já contavam histórias na forma de pinturas rupestres nas paredes das cavernas. Os gregos, os incas, maias e astecas, os povos orientais de milhares de anos atrás, todos criaram complexas mitologias que podem ser encontradas hoje, compiladas em livros que sempre se julgam ser os mais completos, em sebos perto da sua casa.

O que o mito, a fantasia, a ficção científica e os demais subgêneros literários, as outras manifestações artísticas (o cinema, as artes plásticas, os quadrinhos e as novelas de rádio) têm em comum? São todas formas que os seres humanos encontraram de perceber e dar significado ao mundo ao seu redor. Ou, como diz Karen Armstrong no livro Breve História do Mito:

[as histórias] nos dão a sensação de que a vida, apesar de todas as provas caóticas e arrasadoras em contrário, possui valor e significado.

Essas também são o que podemos chamar de formas de produção de conhecimento. Existem outras, como os saberes científicos, os sensos comuns, da culinária à astrofísica etc. Mas conhecimento sobre o quê? Diria Todorov que a literatura (mas não só) nos traz conhecimentos sobre o ser humano, sobre a condição humana, não como um manual de instruções, mas sim nos colocando em contato com contextos diferentes do nosso. Pela literatura, podemos experimentar a sensação de termos outro sexo, de termos nascido em outra época, ou mesmo de falar outra língua e de conhecer pessoas diferentes das que conhecemos.

O que talvez nos responda em parte à pergunta do porquê consumimos literatura.

Não é de se estranhar, portanto, que, assim como em qualquer comunidade ou meio de expressão artística, ocorra na literatura o que podemos chamar de “segregação” entre o que é melhor ou pior. Esta não é uma discussão nova e de fácil resposta, mas, de vez em quando acontecem coisas que nos trazem de volta aos mesmos temas e que promovem discussões que eu acredito serem interessantes e positivas para um entendimento mais amplo e complexo do que é literatura e “para quê” ela serve.

Pois bem, eis que estou tomando banho, é uma terça-feira, dia 17 de abril de 2018 e, quando saio do chuveiro feliz da vida e pensando com meus botões em começar a escrever textos no Medium, encontro minha namorada, a Gabriela, furiosa com um e-mail da TAG Experiências Literárias que fazia uma distinção explícita entre duas classes de leitores: uma intelectualmente superiora, que, em suas palavras são “mais avançados” e uma intelectualmente inferiora, que, abre aspas, “valorizam um enredo envolvente (…) e que não gostam de tramas que exigem muita concentração (…)”. Eu botei a imagem do e-mail, logo abaixo, por motivos de ilustração.

Abri o Twitter para ver que voltamos, mais uma vez, à mesma discussão. A batalha da “alta literatura” é antiga e ambos os lados pensam que são vencedores.

O grande problema ao meu ver de se criar um termo como “alta literatura” é que isso imediatamente pressupõe que existe uma “baixa literatura”, ou seja, uma literatura de cunho inferior para leitores inferiores que, nas palavras dos curadores da TAG, “não gostam de tramas que exigem muita concentração”.

Me parece (e o leitor sinta-se à vontade para discordar se assim for seu desejo) algo que se desenvolveu a partir de uma luta de classes: a elite intelectual minoritária, versus o que nós comunicadores gostamos muito chamar de “sociedade das massas”. Opinião semelhante encontrei no livro Os Intelectuais e as Massas de John Carey, teórico britânico, que diz, logo na contra-página:

[O] argumento [deste livro] é que a literatura e a arte modernistas podem ser vistas como uma reação hostil ao público leitor, que alcança agora um volume humano sem precedentes e que foi gerado pelas reformas educacionais do fim do século XIX. Sugere que a finalidade da escrita modernista era de excluir esses leitores recém-educados (…) preservando assim a segregação entre o intelectual e a ‘massa’.

Esse discurso, como podemos ver, persiste até hoje. Um discurso que afirma que existe uma classe superior e uma classe inferior (de leitores) e, consequentemente, manifestações artísticas (no caso literárias) superiores e inferiores. O problema é que, quando você coloca as coisas em uma caixinha, você tem que ser específico em dizer o que fica fora e o que fica dentro. O que, supostamente, é literatura “de verdade” e o que não é.

Durante toda a minha vida estive cercado por obras de fantasia e ficção científica, visto que meus pais são escritores que lidam com esses gêneros há mais tempo do que eu tenho de vida. Ambos os gêneros são historicamente categorizados como “subliteratura”, ou, ainda melhor “literatura de entretenimento”, pressupondo que “entretenimento” é algo esvaziado de sentido e complexidade, e que não faz parte das classes intelectuais dominantes.

O que no caso levanta a questão: os curadores da caixa literária sabem do que se trata Cem Anos de Solidão e Fahrenheit 451?

Dizer que certos gêneros, subgêneros ou categorias de produção literária não se encaixam na alta literatura é dizer também que esses subgêneros e categorias são desprovidos de sentido e complexidade, o que, em termos práticos, não é bem verdade.

Livros Young Adult (ou Jovem Adulto, que, por sua vez, só para começo de conversa, é uma categoria de idade e não de gênero literário) tem lidado cada vez mais com questões de sexo, orientação sexual, etnia, política e outros temas que dificilmente podem ser categorizados como “simples” (no sentido de carentes de complexidade) ou desprovidos de sentido. O mesmo pode ser dito da ficção científica, visto como um gênero historicamente “popular” e consequentemente inferior, mas que trata de questões filosóficas e epistemológicas da condição humana há centenas de anos…

Mas quais são os temas com os quais a literatura dita “alta”, ou mesmo mainstream, lida?

No Brasil, pelo menos, o panorama não parece lá muito positivo. Em outubro do ano passado, esbarrei com um texto escrito pro André Forastieri intitulado Por que o Brasil não Ganha o Nobel de Literatura. Confesso que não achei o texto muito bem escrito, mas julguei que trazia questionamentos muito pertinentes para a produção literária nacional. Por exemplo, ele trouxe um estudo feito pela professora Regina Dalcastagnè da UNB (que depois fui caçar, para ter um panorama mais completo) que fez um levantamento de 158 romances de 165 escritores diferentes, de 1997 a 2012, constatando o seguinte: esses livros não incluem brasileiros de etnias diferentes, gays, lésbicas, velhos, deficientes e outras minorias. Em 56% dos livros estudados, todos os personagens são brancos.

Esse é um panorama preocupante, mas penso que, talvez se a professora tivesse feito um recorte que incluísse livros da literatura YA, ficção científica, fantasia e outros subgêneros populares, esse número fosse um pouco diferente. Isso é claro, mera especulação, afinal, certos fatores influem na minha percepção de que esses modos literários tratam de termas mais abrangentes e socialmente relevantes: gosto pessoal, visão editorial etc. Mas abra o Twitter que tenho certeza de que você encontrará muitas pessoas que concordam comigo.

O problema é o seguinte: enquanto se perpetua essa noção de que existe uma diferença entre as produções literárias no sentido de “melhor” ou “pior”, o panorama apresentado pela professora Regina Dalcastagnè vai encontrar dificuldades para ser superado.

Por que interessa tanto aos escritores brasileiros escrever sobre exatamente o que eles conhecem e somente isso? Que tipo de literatura é essa que eles estão produzindo? Isso é Alta Literatura?

Onde fica o espaço da imaginação, o esforço de imaginar pessoas diferentes de você, que tenham outro sexo, outra religião, outras opiniões? Questões que, como mencionei no começo deste desabafo, e como diz Todorov em seu livro, são justamente os motivos pelos quais consumimos literatura em primeiro lugar. Porque a literatura é um modo de produção de conhecimento, de interpretação do mundo, de nos colocar em um sentido mais amplo e mais complexo e de nos auxiliar nessa vocação de ser humano…

Acho que escrevi tudo isso apenas para defender uma simples tese: há muito conhecimento e discussões disponíveis de forma acessível nessa chamada “Baixa Literatura”, para aqueles que sabem onde olhar.

Referências e sugestões bibliográficas:

ARMSTRONG, Karen. Breve História do Mito. Companhia das Letras, São Paulo, 2005.

CAREY, John. Os Intelectuais e as Massas. Editora Ars Poetica, São Paulo, 1993.

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009.

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Roberto Fideli

Redator, jornalista, mestre em comunicação pela Cásper Líbero, escritor de fantasia e ficção científica.