Review do baú: Neon Genesis Evangelion

Roberto Fideli
8 min readFeb 26, 2021
Neon Genesis Evangelion (JAP, 1995–1996). Direção geral de Hideaki Anno. Duração de 26 episódios.

Existem obras de ficção que definem uma geração inteira, ou que praticamente sozinhas redefinem todo um gênero. No caso das animações japonesas de robô gigante (os chamados mechas), não há obra mais cultuada, mais comentada, mais problematizada nem mais considerada “revolucionária” para sua época do que Neon Genesis Evangelion.

Criada por Hideaki Anno, a série original foi ao ar entre 1995 e 1996, durando um total de 26 episódios. Além deles, há também um mangá, escrito e ilustrado por Yoshiyuki Sadamoto, e dois longa-metragens: Evangelion: Death & Rebirth (1997) e The End of Evangelion (1997). O primeiro, uma recapitulação com cenas adicionais da série que foi para a tevê com um bloco que continha trinta minutos de material inédito; o segundo, uma versão alternativa dos dois últimos episódios que causaram tanto furor, confusão e especulação na época de seu lançamento (e que continuam causando até hoje).

Em 1995, Evangelion foi o veículo que Anno encontrou para tratar de temas como depressão, solidão e isolamento, característicos de uma sociedade japonesa que havia passado por uma mudança drástica em um curto período de tempo após o término da Segunda Guerra Mundial. Quem eram os japoneses depois da derrota? Quem eram os japoneses que, no começo do século XX, migraram de uma sociedade majoritariamente rural para uma sociedade predominantemente urbana, que agora eram forçados a viver em um mundo globalizado, caótico, discordante, plural e contraditório? Esses questionamentos e ansiedades se materializavam em alienígenas gigantescos cujos adversários eram robôs tripulados por indivíduos marcados por essas mesmas ansiedades e dúvidas, desamparados e desiludidos com as instituições que deveriam protegê-los e orientá-los.

Um aspecto interessante das fan-arts de Evangelion é como elas invocam um certo sentimento de melancolia: nos dão vislumbres de destinos que gostaríamos para os personagens, mas que não necessariamente se concretizaram.

A questão é: hoje, mais de um quarto de século depois, como a série se sustenta, sozinha e em comparação com outras obras do gênero? A segunda pergunta é mais fácil de responder do que a primeira. Embora Evangelion use muitos dos temas tradicionais das aventuras de mechas na animação japonesa, e mesmo que seu próprio final seja inspirado em uma obra anterior — Space Runaway Ideo (1980) — , o tratamento que ele dá para a história e seus personagens principais continua sendo único e importante, ainda mais se considerarmos que essas dúvidas e ansiedades de um mundo pós-colonial e pós-moderno só se intensificaram nos últimos anos. Evangelion permanece estranhamente atual, mesmo que sua técnica hoje seja vista como inferior às animações mais recentes. Agora, como a série se sustenta sozinha?

Evangelion se passa no ano de 2015, quinze anos após um evento devastador destruir o continente Antártico, elevando o nível dos oceanos e aniquilando cerca de metade da humanidade. O evento foi descrito como “Segundo Impacto”, e teria sido supostamente causado pela queda de um meteorito. Mas a verdade é que ele é resultado de um encontro com uma vida aparentemente extraterrestre. Uma década e meia depois, esses mesmos alienígenas, chamados de “Anjos”, retornaram à Terra para terminar o serviço. A melhor maneira de enfrentá-los é por meio de robôs gigantes chamados de “Evas”, abreviação da palavra “Evangelion”, que dá título à série.

Shinji Ikari, o personagem principal, é chamado pelo seu pai, Gendo, líder de uma organização secreta chamada Nerv que desenvolveu os Evas para pilotar o imenso robô gigante na luta contra os Anjos, auxiliado por duas garotas: a enigmática Rei Ayanami e a mercurial Asuka Soryu. Liderando a operação está Misato Katsuragi e aí temos o quinteto de personagens principais que vão guiar o seriado no curso de seus 26 episódios. O objetivo é deter o avanço dos Anjos, e o desenrolar do evento apocalíptico chamado de forma recorrente de “Terceiro Impacto”, que acabaria com toda a vida humana no planeta.

Shinji acompanhado de suas duas colegas, Rei (de cabelo azul) e Asuka (de cabelo vermelho). Uma das duras críticas que a série merece é a maneira como ela encontra desculpas para mostrar constantemente suas personagens adolescentes sem roupa — ainda que algumas dessas ocasiões sirvam para tratar de temas como o amadurecimento e o despertar sexual na adolescência, às vezes o recurso é puro fan-service.

O que se pode dizer da estrutura de Evangelion é que a série começa usando uma abordagem “episódica”, sem trocadilho: cada capítulo revela um novo desafio para os personagens, normalmente se encerrando dentro dos vinte e cinco minutos estipulados pela programação da TV a cabo. Um novo Anjo é enfrentado e derrotado, e assim sucessivamente, até mais ou menos a metade do show. E então as coisas começam a ficar estranhas.

Enquanto a primeira de Evangelion é leve e divertida, usando-se dos elementos dos robôs gigantes enfrentando alienígenas igualmente gigantes de maneira quase tradicional, a segunda é tudo menos isso. Mais sombria, pega todos os elementos apresentados no começo, todas as conquistas emocionais e psicológicas dos personagens, e as destrói, uma por uma, quase como uma decomposição das peças que foram colocadas no tabuleiro inicial. A conclusão resulta nos famosos dois últimos episódios, que abandonam por completo os signos do robô e do alienígena para dar lugar ao abstrato e surrealista (trechos do episódio final, aliás, são feitos em formato de storyboard). Alguns poucos o consideram uma homenagem ao enigmático final de 2001: Uma Odisseia no Espaço, outros discorrem e discorrem acerca de seu potencial significado, como foi meu caso. O restante (e grande maioria) apenas ficou coçando a cabeça e pensando “que porra foi essa?”

Rei Aynami e Gendo Ikari diante de um dos primeiros Anjos em The End of Evangelion.

Os infelizes que foram procurar explicações em The End of Evangelion ficaram igualmente frustrados. O filme, que tem pouco menos de 1h30 de duração, apresenta uma versão dos dois episódios finais, com direito até a interlúdio. O primeiro segmento, intitulado “Air / Love is Destructive”, mostra o confronto final entre a Nerv (comandada pelo pai do Shinji) e a Seele, uma organização ainda maior, responsável projeto chamado de “Instrumentalização Humana”, este, uma versão do Terceiro Impacto que seria controlada pelos humanos em busca de uma nova condição de existência, a união de todas as almas em uma consciência única. É o episódio que os fãs estavam buscando; violento, impactante e movimentado, definia destinos de determinados personagens e apresentava uma das sequências de luta entre robôs mais intensas e brutais na história da animação japonesa. Awesome.

O segundo segmento, intitulado “Sincerely Yours / ONE MORE FINAL: I need you”, apresenta uma estética abstrata e surrealista semelhante a do episódio 26 da série, mas alternando entre uma perspectiva global do evento chamado de Terceiro Impacto, e o interior da mente de Shinji que, depois de perdas recentes, precisa encontrar motivações para continuar vivendo. Fãs criticaram e até mesmo ameaçaram o criador Hideaki Anno de morte na época do lançamento, mas depois a obra ganhou um status de cult e hoje se encontra no top 250 de filmes do Imdb. Mas uma pergunta persiste: Evangelion produz sentido?

Independentemente do que você tira de Evangelion, a série e o filme contêm imagens verdadeiramente perturbadoras.

Isso depende da sua postura com relação à série e ao filme. Certas obras são projetadas para dar margem à múltiplas interpretações. Assim como outras histórias de gênero da ficção científica, como Dark, ou mesmo aquelas que pertencem à esfera da alta literatura, como Meridiano de Sangue, Evangelion é tão aberto e ambíguo que pode tanto significar muita coisa, como pode não significar coisa alguma.

Todos os personagens da série, em uma medida ou outra, enfrentam os mesmos problemas de solidão, depressão e busca por identidade. Contrariando os clichês de animações japonesas ou mesmo da ficção científica no geral, eles são desajustados, contraditórios, frágeis. Shinji é um herói relutante e profundamente não-heroico. Isso causa certo desconforto na audiência, assim como uma crítica injusta: queremos que o herói lute, engaje, enfrente os problemas com o queixo erguido e sem olhar para trás. Mais ainda, queremos que ele veja o mundo comum que ele abandona como sendo tedioso e desinteressante, muito como Luke Skywalker fez quando seus tios morreram no episódio IV, Uma Nova Esperança. Na ocasião, ele pareceu quase aliviado por sair das garras da prisão monótona que era Tatooine, e se tornar livre para seguir na aventura que tanto sonhou.

Shinji não é assim, e a angústia dele é reflexo da angústia do próprio espectador diante de situações que o obrigam a sair do conforto e segurança da vida ordinária, e que levam ao desconhecido. Isso o torna um raro protagonista de uma história de aventura que não reflete aquilo que nós queremos ser, e sim o que nós somos. Esta, talvez, seja a maior qualidade de Evangelion, e a mais menosprezada também.

O seriado foi tema do meu mestrado, anos atrás, e você pode conferir ele aqui. O propósito da dissertação acadêmica foi analisar o uso dos elementos simbólicos cristãos — outra escolha que diferencia Evangelion das animações japonesas tradicionais do gênero mecha — e isso não nos interessa muito nesta resenha. O que vale dizer é que hoje, certo tempo depois, e com um olhar menos deslumbrado, passei a enxergar o final exuberante, paradoxal, enigmático e surrealista com uma pontada de decepção, como se fosse uma oportunidade perdida. Oportunidade do quê? De explorar todo o potencial dramático que a série tinha a oferecer.

O elenco completo de Evangelion; havia um enorme potencial dramático e narrativo que foi desperdiçado em prol de um final mais ousado e ambíguo. Justo, porque são escolhas feitas pelo cineasta, ciente de que para seguir um caminho era necessário abdicar de outro. No fim, o status cultuado que a série recebeu provavelmente justificou tal escolha, já que hoje ela é considerada uma das melhores obras audiovisuais de todos os tempos.

De fato, tanto os dois últimos episódios do seriado quanto o final concomitante do longa-metragem são poços ricos para interpretações das mais variadas. Mas os personagens com os quais passamos tanto tempo juntos, querendo ampará-los, consolá-los ou simplesmente chacoalhá-los tamanha nossa frustração, e seus respectivos dramas, pareceram ficar em segundo plano (enquanto outros indivíduos que compõem o elenco de apoio, por sua vez, foram totalmente esquecidos). Uma pena, pois a história que Evangelion conta é muito boa, repleta de dramas humanos (tanto materiais quanto metafísicos), coisas que aconteceram no passado e que influenciam o presente, insegurança, solidão, abandono, e uma constante busca por aceitação e afeto. Será que essa escolha serve para mascarar a incerteza dos cineastas em como terminar algo que cresceu além de seu controle? Um estudo do contexto no qual a série foi feita sugere que sim. Muitos dirão que ela é pretenciosa em suas divagações existenciais e místicas. Provavelmente. Outros dirão que ela é uma grande paródia, um pastiche, uma piada que estamos levando excessivamente a sério faz mais de duas décadas. Justo. Mas seja como for, é impossível negar que Evangelion é diferente. Era assim 26 anos atrás, continua sendo hoje.

Então, se você quiser conhecer algo fora do padrão tradicional do robô gigante, algo que vá além, muito além, eu recomendo veemente que você assista Evangelion. E ao longa-metragem também, pois acredito que ele acrescenta em muito à série original e é muito bem feito. Mas talvez uma certa prudência seja bem-vinda. Este é um seriado controverso e com razão.

Nota final: 8,5/10

--

--

Roberto Fideli

Redator, jornalista, mestre em comunicação pela Cásper Líbero, escritor de fantasia e ficção científica.