Review: Licorice Pizza

Roberto Fideli
5 min readFeb 15, 2022

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Licorice Pizza (EUA, 2021). Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson. Duração: 2h13min.

Os filmes do cineasta americano Paul Thomas Anderson são um tipo raro de animal: esqueça a estrutura em três atos e tramas que tenham qualquer tipo de previsibilidade. Como o próprio diretor afirmou em entrevistas passadas, seus filmes não possuem um enredo propriamente dito. Ao invés, eles parecem escritos pelos próprios personagens que os protagonizam, andando sobre caminhos tortuosos e às vezes alcançando destinos ambíguos e enigmáticos.

Natural da Califórnia, Anderson começou a carreira dirigindo curtas-metragens antes de estourar no cinema estadunidense com Jogada de Risco (1996) e Boggie Nights: Prazer sem Limites (1997), que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar, na categoria de melhor roteiro original.

Os primeiros trabalhos de Anderson pareciam amplamente influenciados pelo estilo de outro cineasta americano de grande relevância histórica: Martin Scorcese. Com uma câmera hiperativa e diálogos acelerados, os longas bombardeavam o espectador com informações em ritmo frenético e implacável. O bizarro muitas vezes se misturava com o que há de mais profundo e melancólico na vida humana, como no caso de Boggie Nights e Magnólia (1999), este último uma epopeia de três horas que acompanha um vasto elenco de personagens e suas desventuras e desencontros nos quais, como afirma o narrador onisciente, não existem coincidências.

Com o passar do tempo, porém, os filmes de Anderson tornaram-se cada vez mais sutis e ambivalentes: a câmera em movimento ainda se mostra presente em Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012), mas com efeitos menos óbvios. E a delicadeza e cuidado com as nuances adquirem papel preponderante em Trama Fantasma (2017), último veículo audiovisual do aclamado ator Daniel Day Lewis, que havia ganhado o Oscar de melhor ator em Sangue Negro.

Daniel Day Lewis em Sangue Negro (2007): Anderson é mais do que um excelente diretor de atores, ele possui domínio total e um conhecimento enciclopédico sobre técnicas de filmagem. Seus filmes são elegantemente filmados, mesmo que seus personagens sejam o oposto.

Desse modo, o último filme de um dos cineastas mais reconhecidos de sua geração, Licorice Pizza (2021), parece a progressão natural de um desenvolvimento estilístico que já estava em curso há algum tempo. O que surpreende, portanto, é a escolha de tema e de tom.

O longa que está indicado a três categorias do Oscar (melhor filme, diretor e roteiro original), acompanha o crescimento, as aventuras e desencontros de um casal de jovens que vivem no vale de São Francicso em 1973: Alana — interpretada pela cantora Alana Haim — , de vinte e cinco anos, e Gary — interpretado por Cooper Hoffman, filho do ator Philip Seymor Hoffman, que colaborou com Anderson em cinco ocasiões antes de sua morte — , de quinze. Os dois fazem suas respectivas estreias no mundo cinematográfico.

Alana Haim e Cooper Hoffaman, em seus papéis de estreia, têm angariado opiniões muito favoráveis dos críticos de cinema no mundo todo.

Os dois personagens se encontram pela primeira vez em uma sessão de fotos no colégio de Gary, e o adolescente imediatamente põe na cabeça que encontrou a mulher da sua vida: depois de muita insistência, ele a convence a sair num encontro, e a história entra em movimento.

Seria correto dizer que Licorice Pizza não possui um enredo facilmente identificável. Como muitos trabalhos de Anderson, a história vai se desdobrando aos poucos, sem pressa, e sem indicativos claros de aonde quer chegar. A partir daí, duas abordagens se mostram possíveis: a de questionar a cada quinze minutos em tom de frustração o que diabos está acontecendo, ou simplesmente aceitar o fato de que o filme, assim como a vida, não possui lá muito nexo e aproveitar a viagem.

Em dados momentos, Gary e Alana entram no mercado de venda de colchões d’água, depois se separam, com Alana buscando perseguir uma carreira como atriz que a coloca no caminho de um ator interpretado pelo veterano Sean Penn que, apesar de charmoso, não é muito esperto. Depois ela e Gary se metem com produtor de Hollywood completamente louco interpretado por Bradley Cooper, e, por fim, com um senador americano que possui segredos delicados. Esse vai e volta coloca duas forças em oposição: o ímpeto juvenil do rapaz que enxerga em cada esquina uma oportunidade, contra a inação titubeante dela. Os dois, de um modo pouco convencional e às vezes polêmico (pela diferença de idade entre ambos), parecem destinados a ficar juntos, apesar das peripécias que encontram pelo caminho.

Bradley Cooper como o imprevisível (e lunático) produtor Jon Peters: Licorice Pizza é recheado de aparições especiais de atores famosos, e a trama possui laços fortes com a indústria do cinema da época.

Anderson possui um dom incomum de juntar diferentes linhas narrativas e situações das mais absurdas em algo que, no fim, possui lógica e coerência internas. Também é capaz, como poucos além dele, de transportar o espectador — por meio do vasto arsenal técnico à sua disposição — para outro lugar e outra época. A visão de Anderson do amor entre esses dois personagens, e do período em que eles viveram, é solar, otimista e romântica, algo que vai na contramão de praticamente todos os seus trabalhos anteriores, que exploram as relações tóxicas e corrosivas entre seus personagens principais.

O resultado, portanto, é um filme que surpreende pela delicadeza. Seus momentos climáticos (se é que podem ser chamados assim) parecem naturais ao invés de arquiteturais, e o efeito permanece impregnado na mente muito depois que a seção acabou. Há muito tempo eu não me sentia tão feliz de ter ido ao cinema, rindo à toa pensando em tudo o que aconteceu. Licorice Pizza é um filme doce, relaxado, lindo de se contemplar, profundamente ingênuo, e exatamente o que precisamos hoje em dia.

Nota Final: 10/10

*Licorice Pizza se traduz para o português como “Pizza de Alcaçuz”. É o nome de uma franquia de (e uma gíria para) discos de vinil.

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Roberto Fideli

Redator, jornalista, mestre em comunicação pela Cásper Líbero, escritor de fantasia e ficção científica.