Em defesa da “baixa” literatura
Como certa vez disse Gene Wolfe, toda ficção é uma fantasia. Algumas só são mais sinceras a respeito.
Há um entendimento para quem faz parte em algum grau do mundo literário de que a ficção científica, a fantasia e o horror são gêneros de pouco prestígio dentro do meio, e isso se deve por uma grande variedade de motivos. Parte desse preconceito envolve o fato de que esses gêneros sempre foram associados a uma classe de entretenimento massificada, e se algo é massificado, não pode ser sofisticado de forma alguma (com base nesse olhar, uma coisa não pode ser simultaneamente profunda e acessível). A ficção científica, por exemplo, ganhou nome e popularidade no começo do século XX por conta das revistas pulp, que tinham baixa qualidade tipográfica e preços acessíveis para um público consumidor de pouco poder aquisitivo, enquanto a fantasia tem origem nos mitos e contos de fada que fazem parte de uma tradição oral de contar histórias e de um tipo de conhecimento que, com o advento do Iluminismo, passou a ser considerado ultrapassado.
Outro motivo que contribuiu para o pouco prestígio da fantasia e da ficção científica no meio literário (e em outros também) é a dificuldade que as pessoas têm de interpretar metáforas. Em minhas aulas no curso de Jornalismo Geek, dadas uma vez por semestre na Faculdade Cásper Líbero, sempre alerto os alunos para o fato de que os temas que eles tanto gostam atuam no campo do simbólico e do metafórico. O símbolo, por definição, é tudo o que representa, sugere ou substitui alguma coisa, de modo que, para entender o que um símbolo quer dizer, é preciso estudá-lo. A linguagem escrita, por exemplo, é em sua grande maioria simbólica, pois precisamos aprender o que as palavras significam. Não nascemos sabendo que a palavra escrita “cachorro” representa aquele animal de quatro patas que balança o rabo quando está feliz e faz “au au”. Aprendemos por meio da alfabetização.
A falta desse entendimento, que não é tácito, leva as pessoas a cometerem equívocos quando dizem coisas como “eu não gosto de histórias sobre robôs e sim sobre pessoas”, quando, na verdade, histórias sobre robôs são sobre pessoas. Só que a FC lança mão de signos como o robô, o alienígena, ou a viagem pelo tempo e pelo espaço, para tratar de questões humanas que têm a ver com a época em que tal obra foi escrita (muitas vezes tratando das ansiedades de uma sociedade que vivencia um desenvolvimento tecnológico inédito na história humana) e não com o futuro, como também clamam alguns. A ficção científica é um gênero literário que atua, principalmente, no campo metafórico. O robô, por exemplo, pode ser interpretado como a força de trabalho escrava, e ajuda a levantar perguntas como “o que significa ser humano?”, enquanto o alienígena é uma excelente metáfora para falar daquele que é diferente de nós, ou que de alguma forma encontra-se à margem da sociedade ou distante daquilo que consideramos “normativo”. A viagem interestelar, por sua vez, pode ser vista como a representação do grande sonho antigo de visitar novas terras e conhecer novas civilizações ou, parafraseando Jornada nas Estrelas, ir audaciosamente aonde ninguém jamais esteve.
A fantasia e o horror, por sua vez, corporificam arquétipos e figuras da mitologia, fazendo com que caminhem lado a lado com os seres humanos. Os ritos de passagem e os perigos do amadurecimento são muito bem tratados em contos de fada e fantasias dos mais variados tipos, que se desenvolveram e se modificaram com o passar dos séculos. E, desde os tempos mais remotos, as criaturas mitológicas estão presentes em tais histórias para simbolizar adversidades e os mecanismos da transformação psicológica e espiritual pela qual nós e todos os nossos antepassados fomos obrigados a passar desde que a humanidade surgiu. No horror, os arrependimentos, o luto e os medos mais primitivos são corporificados em fantasmas, vampiros e demônios. Essas entidades vivem dentro de nós, como já afirmou Stephen King, alimentam-se das nossas mágoas, inseguranças e defeitos e, se nós deixarmos, elas vencem.
Talvez existam outros elementos que sustentem a visão de que a fantasia, a ficção científica e o horror são gêneros menores, seja na literatura, no cinema, na televisão. Mas a meu ver, essas duas questões são chave para que alcancemos um entendimento mais profundo do que esses gêneros são, que mensagens transmitem, e por que são tratados dessa forma.
Existem maneiras de contornar esse emblema da “baixa” literatura, é claro. Quando um autor de prestígio como Haruki Murakami ou Kazuo Ishiguro escreve fantasia, esta é chamada de realismo mágico, ou outro termo que goze de maior prestígio dentro do meio literário e acadêmico. Outros (quantos?) autores de renome se aventuraram na ficção científica e seus subgêneros, como Ian McEwan, Margaret Atwood e Cormac McCarthy, só para citar alguns. Mas quando eles o fazem, etiquetar suas obras como pertencentes à “ficção científica” soa como um sacrilégio.
A batalha da “alta” literatura já foi um tema que eu tratei aqui no Medium no passado, e você encontra esse texto aqui, se tiver curiosidade. Porém, há de se argumentar que esses autores “renomados” encontraram na fantasia e na ficção científica não um gênero, mas sim um método de contar histórias; para explicitar arranjos sociais e tecer comentários políticos e de identidade que, de outra forma, não seria possível. Porque a ficção científica, a fantasia e o horror, em suas mais variadas configurações, longe das restrições impostas pela literatura dita “realista”, permitem descrever as coisas como elas são tanto como poderiam ser. Puxam a cortina que obscurece elementos que são tão comuns na nossa vida que acabaram por se tornar cotidianos, e mostram como são os motores que colocam esses mecanismos em movimento.
Desde que comecei a publicar meus textos de ficção, em 2019, pessoas das mais variadas têm descrito minhas histórias como “intimistas” e “humanas”. Talvez seja porque no fundo o que eu quero é apenas fazer uso de signos da ciência e imagens da mitologia e do folclore para tratar de coisas humanas como perda, amor, fracasso, luto, maternidade, aceitação…
Exatos três anos atrás, em 6 de agosto de 2019, nasceu a primeira agência literária voltada especificamente para textos assim. Intitulada Magh, palavra que significa “ter poder” e que deu origem às palavras “mágica”, “magia” e “máquina”, a Magh desde então tem buscado lançar e publicar, às vezes por meio de seu próprio selo editorial, autores que se usam desses signos: a nave espacial, o alienígena, o robô, o dragão, o vampiro, o demônio e o fantasma, para narrar histórias sobre a nossa vida, o nosso tempo, o nosso mundo.
A nossa voz.
Para conhecer o trabalho e os autores da Magh, visite o site da agência: https://agenciamagh.com.br/ E para conhecer meu trabalho, visite minha página da Amazon: https://amzn.to/3yp1Qj8