Em defesa da “baixa” literatura

Roberto Fideli
6 min readAug 6, 2021

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Como certa vez disse Gene Wolfe, toda ficção é uma fantasia. Algumas só são mais sinceras a respeito.

Há um entendimento para quem faz parte em algum grau do mundo literário de que a ficção científica, a fantasia e o horror são gêneros de pouco prestígio dentro do meio, e isso se deve por uma grande variedade de motivos. Parte desse preconceito envolve o fato de que esses gêneros sempre foram associados a uma classe de entretenimento massificada, e se algo é massificado, não pode ser sofisticado de forma alguma (com base nesse olhar, uma coisa não pode ser simultaneamente profunda e acessível). A ficção científica, por exemplo, ganhou nome e popularidade no começo do século XX por conta das revistas pulp, que tinham baixa qualidade tipográfica e preços acessíveis para um público consumidor de pouco poder aquisitivo, enquanto a fantasia tem origem nos mitos e contos de fada que fazem parte de uma tradição oral de contar histórias e de um tipo de conhecimento que, com o advento do Iluminismo, passou a ser considerado ultrapassado.

Outro motivo que contribuiu para o pouco prestígio da fantasia e da ficção científica no meio literário (e em outros também) é a dificuldade que as pessoas têm de interpretar metáforas. Em minhas aulas no curso de Jornalismo Geek, dadas uma vez por semestre na Faculdade Cásper Líbero, sempre alerto os alunos para o fato de que os temas que eles tanto gostam atuam no campo do simbólico e do metafórico. O símbolo, por definição, é tudo o que representa, sugere ou substitui alguma coisa, de modo que, para entender o que um símbolo quer dizer, é preciso estudá-lo. A linguagem escrita, por exemplo, é em sua grande maioria simbólica, pois precisamos aprender o que as palavras significam. Não nascemos sabendo que a palavra escrita “cachorro” representa aquele animal de quatro patas que balança o rabo quando está feliz e faz “au au”. Aprendemos por meio da alfabetização.

A falta desse entendimento, que não é tácito, leva as pessoas a cometerem equívocos quando dizem coisas como “eu não gosto de histórias sobre robôs e sim sobre pessoas”, quando, na verdade, histórias sobre robôs são sobre pessoas. Só que a FC lança mão de signos como o robô, o alienígena, ou a viagem pelo tempo e pelo espaço, para tratar de questões humanas que têm a ver com a época em que tal obra foi escrita (muitas vezes tratando das ansiedades de uma sociedade que vivencia um desenvolvimento tecnológico inédito na história humana) e não com o futuro, como também clamam alguns. A ficção científica é um gênero literário que atua, principalmente, no campo metafórico. O robô, por exemplo, pode ser interpretado como a força de trabalho escrava, e ajuda a levantar perguntas como “o que significa ser humano?”, enquanto o alienígena é uma excelente metáfora para falar daquele que é diferente de nós, ou que de alguma forma encontra-se à margem da sociedade ou distante daquilo que consideramos “normativo”. A viagem interestelar, por sua vez, pode ser vista como a representação do grande sonho antigo de visitar novas terras e conhecer novas civilizações ou, parafraseando Jornada nas Estrelas, ir audaciosamente aonde ninguém jamais esteve.

Em 1898, “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, imaginou uma invasão alienígena tecnologicamente muito mais avançada que quase extermina a raça humana para colonizar nosso planeta, prática que o Império Britânico, do qual Wells fez parte, utilizou em diversas civilizações “menos avançadas”.

A fantasia e o horror, por sua vez, corporificam arquétipos e figuras da mitologia, fazendo com que caminhem lado a lado com os seres humanos. Os ritos de passagem e os perigos do amadurecimento são muito bem tratados em contos de fada e fantasias dos mais variados tipos, que se desenvolveram e se modificaram com o passar dos séculos. E, desde os tempos mais remotos, as criaturas mitológicas estão presentes em tais histórias para simbolizar adversidades e os mecanismos da transformação psicológica e espiritual pela qual nós e todos os nossos antepassados fomos obrigados a passar desde que a humanidade surgiu. No horror, os arrependimentos, o luto e os medos mais primitivos são corporificados em fantasmas, vampiros e demônios. Essas entidades vivem dentro de nós, como já afirmou Stephen King, alimentam-se das nossas mágoas, inseguranças e defeitos e, se nós deixarmos, elas vencem.

O Babadook, da cineasta australiana Jennifer Kent, assusta porque é real: é a corporificação do luto não trabalhado que, se deixado livre para crescer como quiser, nos destrói de dentro para fora.

Talvez existam outros elementos que sustentem a visão de que a fantasia, a ficção científica e o horror são gêneros menores, seja na literatura, no cinema, na televisão. Mas a meu ver, essas duas questões são chave para que alcancemos um entendimento mais profundo do que esses gêneros são, que mensagens transmitem, e por que são tratados dessa forma.

O planeta Solaris, criado pelo escritor polonês Stanislaw Lem (e que depois virou filme primeiro sob o comando de Andrei Tarkovsky e então de Steven Soderbergh), é um alienígena tão diferente de nós que todas as tentativas de comunicação entre ambos os lados fracassam.

Existem maneiras de contornar esse emblema da “baixa” literatura, é claro. Quando um autor de prestígio como Haruki Murakami ou Kazuo Ishiguro escreve fantasia, esta é chamada de realismo mágico, ou outro termo que goze de maior prestígio dentro do meio literário e acadêmico. Outros (quantos?) autores de renome se aventuraram na ficção científica e seus subgêneros, como Ian McEwan, Margaret Atwood e Cormac McCarthy, só para citar alguns. Mas quando eles o fazem, etiquetar suas obras como pertencentes à “ficção científica” soa como um sacrilégio.

A batalha da “alta” literatura já foi um tema que eu tratei aqui no Medium no passado, e você encontra esse texto aqui, se tiver curiosidade. Porém, há de se argumentar que esses autores “renomados” encontraram na fantasia e na ficção científica não um gênero, mas sim um método de contar histórias; para explicitar arranjos sociais e tecer comentários políticos e de identidade que, de outra forma, não seria possível. Porque a ficção científica, a fantasia e o horror, em suas mais variadas configurações, longe das restrições impostas pela literatura dita “realista”, permitem descrever as coisas como elas são tanto como poderiam ser. Puxam a cortina que obscurece elementos que são tão comuns na nossa vida que acabaram por se tornar cotidianos, e mostram como são os motores que colocam esses mecanismos em movimento.

O replicante Roy Batty, de Blade Runner, é um ser inteligente e senciente, mas que aos olhos de sua sociedade não passa de uma coisa.

Desde que comecei a publicar meus textos de ficção, em 2019, pessoas das mais variadas têm descrito minhas histórias como “intimistas” e “humanas”. Talvez seja porque no fundo o que eu quero é apenas fazer uso de signos da ciência e imagens da mitologia e do folclore para tratar de coisas humanas como perda, amor, fracasso, luto, maternidade, aceitação…

Exatos três anos atrás, em 6 de agosto de 2019, nasceu a primeira agência literária voltada especificamente para textos assim. Intitulada Magh, palavra que significa “ter poder” e que deu origem às palavras “mágica”, “magia” e “máquina”, a Magh desde então tem buscado lançar e publicar, às vezes por meio de seu próprio selo editorial, autores que se usam desses signos: a nave espacial, o alienígena, o robô, o dragão, o vampiro, o demônio e o fantasma, para narrar histórias sobre a nossa vida, o nosso tempo, o nosso mundo.

A nossa voz.

Para conhecer o trabalho e os autores da Magh, visite o site da agência: https://agenciamagh.com.br/ E para conhecer meu trabalho, visite minha página da Amazon: https://amzn.to/3yp1Qj8

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Roberto Fideli

Redator, jornalista, mestre em comunicação pela Cásper Líbero, escritor de fantasia e ficção científica.